Boécio, pelo grande exemplo que pude ler em Consolação, foi, dentre muitas coisas, um mestre na “arte” de tentar reunir razão e fé. Por meio de uma maiêutica socrática, em que a filosofia faz o “papel” de Diotima (aquela que conversa com Sócrates e lhe explica o que é o amor em O Banquete) e traz à luz o raciocínio lógico que deve nos levar a entender questões pungentes como a existência do mal e de D’us, a Fortuna em contradição com a Providência Divina, a verdadeira felicidade, a impunidade dos maus, o sofrimento dos bons etc. Podemos comparar seu descobrimento filosófico com a o Mito da Caverna de Platão. É por meio da conversa com a Filosofia que Boécio de desvencilha das noções superficiais que o homem tem sobre a felicidade, os verdadeiros bens, a Fortuna e Deus, e passa a compreender o que para ele é o verdadeiro saber, o conhecimento mais profundo da realidade deste mundo. Seguindo uma linha que a princípio parece até ter influências das escolas helênicas, a filosofia lhe explica que as verdadeiras felicidades não são os prazeres do corpo nem os bens materiais que ele possuía. Depois de perder tudo e estar na prisão à espera da morte, Boécio entende que não perdeu nada que tenha valor real.
Boécio nos descreve sua conversa com a Filosofia de maneira clara, com argumentos encadeados didaticamente, usando os meios filosóficos para a transformação do olhar que temos sobre a vida. É como a iluminação da graça, mas com argumentos da filosofia.
Uma das questões principais para ele, e por motivos óbvios, é a da desgraça imerecida. E respondendo a essa questão, a Filosofia vai fazê-lo ver o que é aparência ilusória e o que é a realidade, a verdade de Deus. É uma questão latente e contemporânea, que faz a Consolação ser assustadoramente atual. Por que os bons sofrem tanto? Por que Deus deixa que pessoas más estraguem a vida dos bons? Como pode, se me permitem citar um exemplo que aconteceu semana passada, uma pessoa cruel e má em todos os sentidos dessas palavras, atirar e matar um pai e dois filhos que saíam da escola, porque estes eram judeus (aconteceu em Toulouse, na França)? A violência no mundo de hoje nos esmaga, e o sentimento de liberdade parece não existir mais; para onde quer que se vá, sempre há o mal que insiste em se manifestar. A resposta de Boécio está no verdadeiro estatuto ontológico de Deus e no livre-arbítrio dos homens. Deus, como o Bem supremo, é o Ser único. O mal, produto da escolha do homem, é a vida no não-Ser. Então, quem faz o mal tem seu castigo no próprio viver no não-Ser, privando-se da bondade de Deus. A impunidade seria um castigo, já que não deixa que os maus vejam a realidade verdadeira da bondade de Deus. A escolha do bem faz o homem poder participar da bondade Divina, ter acesso ao transcendente. Vivemos num mundo de aparências, e, para Boécio, os sentidos não podem nos fornecer a verdade, apenas um teatro de ilusões e paradoxos. O racional pode nos levar à verdade universal e transcendente de Deus, que pode dar um pouco de alento para a agonia de quem sofre “injustamente”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário